Uma das personalidades mais fascinantes da história da arte, destacou-se não apenas como pintor — o mais vigoroso e influente do século XVII — mas também por ter encarnado o ideal do artista em conflito com as convenções sociais. Dono de um temperamento agitado, envolveu-se numa série de atos de violência. E sua carreira foi pontilhada por atritos com patronos em função do tratamento pouco ortodoxo que dispensava a temas religiosos. Depois de trabalhar para se estabelecer em Roma, Caravaggio conquistou fama com pouco mais de 30 anos, época em que seu traço vigoroso e o uso dramático do claro-escuro criaram novo vocabulário pictórico. Acusado de homicídio, teve de fugir de Roma no auge da carreira, vivendo o restante de sua breve existência como um nômade, até que a morte chegasse aos 38 anos.
O tempestuoso temperamento de Caravaggio e sua rebeldia às convenções o levaram a inúmeros confrontos com a polícia, vivendo os últimos anos de sua trágica existência como um fugitivo da justiça.
Michelangelo Merisi, filho de Fermo di Bernardino Merisi, nasceu em 1571, provavelmente em Milão, não muito distante da aldeia de Caravaggio, de onde sua família provinha. Anos mais tarde, adotaria o nome de seu local de nascimento, celebrizando-o internacionalmente. Seu pai, que era mordomo-chefe de Francesco Sforza, Marquês de Caravaggio, morreu em 1577, e o menino, junto com dois irmãos (um dos quais viria a falecer em 1588) e uma irmã, foi criado pela mãe, Lucia Aratore.
Em 1584, aos 12 anos, o jovem entrou como aprendiz do estúdio do pintor milanês Simone Peterzano. Pouco se sabe sobre esse período de sua vida, apenas que sua mãe morreu em 1590 e que, dois anos mais tarde, os três irmãos dividiram a propriedade da família em partes iguais. Caravaggio herdou 393 libras imperiais, o que lhe possibilitou partir para Roma. A cidade o atraía pelos grandes mecenas, pelo passado artístico, pelo fausto da corte papal. Ali ele conviveria com artistas e arquitetos de toda a Itália e do exterior, atraídos pelos ambiciosos projetos papais de reconstrução e embelezamento da cidade.
Em virtude da acirrada concorrência, a vida em Roma era muito difícil para um jovem e inexperiente artista, cujo aprendizado se realizara com um mestre de província. Caravaggio poderia ter vivido por vários anos com o dinheiro de sua herança, mas parece que gastou tudo muito depressa e de forma impensada, pois nos primeiros tempos romanos ele teve de lutar contra a fome e a miséria. Para sobreviver fazia trabalhos menores de pintura em série, que interessavam a alguns poucos compradores, geralmente estrangeiros de passagem. O pagamento irrisório que recebia pelas telas não aliviava sua permanente condição de miséria. Com a saúde abalada, chegou a ser internado no Hospital Santa Maria da Consolação, onde pintou quadros — suas primeiras obras conhecidas — para o prior da instituição, que os enviaria depois a Sevilha. Tendo recebido alta, mas ainda debilitado, Caravaggio saiu em busca de novos empregos. Ofereceu-se para trabalhar com Giuseppe Cesari, Cavaleiro d'Arpino. Mas incompatibilizou-se com o estilo de pintura do mecenas e desfez o contrato.
Judite e Holofernes – 1598/99
UM PATRONO INFLUENTE
Tempos mais tarde, o artista atraiu a atenção do Cardeal Del Monte, clérigo rico e sofisticado, colecionador de obras de arte, amante da música e patrono oficial da Academia de São Lucas, a escola dos pintores de Roma. Del Monte representava os interesses de Florença na corte papal e residia num dos palácios da família Medici. O cardeal acolheu Caravaggio em sua casa, oferecendo-lhe alojamento, alimentação e uma pensão regular. Em troca, pintou uma série de quadros de jovens efeminados, pois Del Monte divertia-se discretamente com rapazes. Caravaggio, de resto, parecia compartilhar desse gosto, evidenciado nos seus primeiros trabalhos. Até mesmo em alguns retábulos do fim da carreira pede-se encontrar anjos de natureza andrógina. É surpreendente que, numa época em que o homossexualismo era considerado crime, nenhuma suspeita tenha recaído sobre o próprio Caravaggio. Se existisse alguma dúvida sobre sua sexualidade, certamente os inimigos que fez em sua breve existência — e que não foram poucos — teriam explorado de bom grado esse assunto publicamente. O que provocou maledicências foi a reputação duvidosa de sua namorada — Lena, uma prostituta que ele dizia ter utilizado como modelo para retratar a Virgem.
No início da carreira, Caravaggio pintou naturezas-mortas, paisagens e, eventualmente, obras sacras. Foram criadas para alguns poucos patronos, como Del Monte e o prior do Hospital da Consolação, ou mesmo para serem vendidas por obscuros negociantes do mercado da arte. Não era este, sem dúvida, o caminho para a riqueza e a fama. Em plena Contra-Reforma, Roma assistia ao boom da construção de igrejas, e cada edificação nova exigia a criação de retábulos e a decoração de capelas. Era onde estava o dinheiro e onde se estabelecia a reputação entre o público. Caravaggio, com quase 30 anos, deve ter disputado desesperadamente um espaço nesse mercado tão lucrativo.
A oportunidade veio em 1599, quando recebeu uma encomenda de duas grandes pinturas, para a Capela Cóntarelli, da Igreja de São Luís dos Franceses. É provável que o Cardeal Del Monte tenha servido de instrumento para garantir a seu protegido esse contrato importante.
A Crucificação de São Pedro – 1600/01
PINTURAS AMBICIOSAS
Que se saiba, Caravaggio jamais havia tentado produzir algo em escala comparável. Por mera insegurança. Fotos de raios X tiradas do Martírio de São Mateus revelaram suas dúvidas e incertezas. Hesitava sobre o tamanho adequado das figuras para produzir uma composição convincente. Depois de várias tentativas para melhorar e corrigir a versão original, ele se obrigava a recomeçar tudo. O resultado final, porém, foi um contundente sucesso.
Para Caravaggio era apenas o começo. Outras grandes encomendas surgiram em rápida sucessão. Após alguns anos, a fama do pintor já se difundia por toda a Europa. O historiador de arte holandês Carel van Mander escreveu em 1603: "Existe um tal de Michelangelo da Caravaggio que está fazendo coisas extraordinárias em Roma". Mas não foram apenas notícias sobre o talento do pintor que chegaram até Van Mander. Tinha sido informado também de seu célebre comportamento tempestuoso e violento:
"Ele não trabalha ininterruptamente, de modo que, após duas semanas, larga tudo e sai por dois meses com seu florete e seu ajudante a tiracolo (...) sempre disposto a discutir ou brigar, o que torna impossível a convivência". Muito embora as informações de Van Mander sobre a arte de Caravaggio não fossem totalmente exatas, era correto o comentário a respeito de sua vida pública.
A partir de 1600, época que coincide com seu primeiro sucesso de público, Caravaggio aparece regularmente nos registros policiais de Roma: em novembro daquele ano agrediu um colega com um bastão; em fevereiro do ano seguinte, foi levado a júri sob a acusação de ter ameaçado um soldado com sua espada; em 1603, o pintor Giovanni Baglione lhe moveu uma ação. Foi preso por algum tempo e solto sob a condição de permanecer em casa e não mais ofender Baglione (a quebra do trato o levaria novamente à prisão e às galés); em abril de 1604 acusaram-no de ter agredido o garçom de um restaurante e de tê-lo ameaçado com a espada; mais tarde, no mesmo ano, foi novamente encarcerado por insultar um policial. Os delitos não param aí: em 1605 prenderam-no por carregar uma espada e um punhal sem autorização; por ofender uma senhora com sua filha e também por agredir um tabelião numa briga; por fim, sua senhoria o acusou de não pagar o aluguel, além de ter o hábito de atirar pedras pelas janelas. Talvez não se deva julgar a personalidade de Caravaggio apenas pelos registros criminais e por seu temperamento violento. Afinal, ele foi também sustentado e protegido por alguns dos mais exigentes patronos de Roma, incluindo Del Monte e o Marquês Giustiniani. E alguns de seus melhores amigos e companheiros de aventuras eram homens refinados e cultos. Giovanni Battista Marino, talvez o poeta mais erudito e intelectualizado da época, teve seu retrato executado por Caravaggio e imortalizou em poemas a arte do amigo. E embora as declarações públicas de Caravaggio a respeito de artistas — seus contemporâneos ou antecessores — soassem rudes e simplistas, ele costumava estudar em segredo a arte de Michelangelo, Leonardo, Rafael e dos grandes pintores venezianos. Com muita argúcia e fina sensibilidade. Enfim, não se conhece o suficiente sobre sua vida íntima, interesses e conhecimentos para formar uma imagem concreta de seu caráter, além daquela fornecida pelos registros policiais da época.
No dia 28 de maio de 1606, de resto, o temperamento violento de Caravaggio o levou à tragédia. Por não querer pagar uma aposta de 10 escudos, ele e alguns amigos envolveram-se numa briga com um certo Ranuccio Tommasoni. Na tragédia, o pintor saiu gravemente ferido e Tommasoni acabou morrendo em virtude dos ferimentos.
Jovem Baco - 1595
FUGA PARA ROMA
Caravaggio conseguiu se esconder por três dias, provavelmente no palácio de seu protetor, o Marquês Giustiniani. Depois fugiu de Roma, para onde jamais retornaria. Desconhece-se seu paradeiro pelos cinco meses seguintes. Por volta de outubro de 1606 estava em Nápoles, fora de jurisdição papal e em segurança. Em menos de um ano completou no mínimo três grandes retábulos, esperando ansioso que seus amigos romanos e patronos influentes lhe obtivessem o perdão papal para que pudesse retornar a Roma. Mas a resposta das autoridades custava a chegar, e, em julho de 1607, Caravaggio saiu de Nápoles com destino à ilha de Malta.
Não se sabe se viajou para Malta na esperança de ser feito Cavaleiro de São João, ou se os cavaleiros malteses o convidaram para pintar alguns quadros. O fato é que sua permanência na ilha foi muito produtiva. Além dos retratos, entre outros o do Grão-mestre Alof de Wignacourt, realizou uma obra de grande porte, A Decapitação de São João, o santo padroeiro da Ordem dos Cavaleiros.
Em julho de 1608, foi sagrado Cavaleiro da Ordem da Obediência, em reconhecimento por seu trabalho. Além disso, o Grão-mestre condecorou-o com uma corrente de ouro e outras honrarias, além de colocar à sua disposição dois escravos turcos. Mas, incapaz de submeter-se à severa disciplina da Ordem, o temperamental pintor revidou a ofensa que lhe fez um cavaleiro e acabou preso novamente. É provável tamém que as notícias sobre o crime que cometera em Roma já tivessem se difundido em Malta, complicando sua situação. Ajudado por amigos, conseguiu escapar e fugiu para a Sicília. Foi destituído de todas as honrarias e excluído da Ordem. Pressentindo a vingança em seu encalço, Caravaggio mudava constantemente de cidade. E esteve em Siracusa, Messina, Palermo e, depois de concluir alguns retábulos, retornou a Nápoles, em 1609. A fama lhe propiciava vultosas somas em cada obra vendida. No entanto, era ainda fugitivo. E agora não apenas da justiça papal, mas também dos cavaleiros de Malta. Em outubro de 1609, chegaram a Roma alguns boatos de que havia sido morto ou gravemente ferido em Nápoles. De acordo com alguns relatos, sicários do cavaleiro maltês ofendido o descobriram e o feriram seriamente no rosto, deixando-o desfigurado.
A notícia dessa agressão chegou a Roma, fazendo com que se intensificassem os esforços dos amigos para obter o perdão do papa. Tinha então o apoio do Cardeal Ferdinando Gonzaga, que comprara sua tela A Morte da Virgem, obra rejeitada pelo conservadorismo dos padres de Santa Maria della Scala. Diante da notícia de que o papa estaria prestes a conceder-lhe graça, Caravaggio partiu para Roma, sem esperar resposta sobre sua anistia. No verão de 1610, deixou Nápoles repentinamente. Mas ainda sem a plena certeza da sorte que o esperava, desembarcou em Porto Ercole, cidade situada cerca de 13 quilômetros ao norte de Roma e que à época era um protetorado espanhol. Esperava retornar a Roma em breve, mas não podia pisar nos Estados Pontifícios sem o perdão papal. Estava ansioso para reencontrar os amigos e os antigos patronos, o que não iria ocorrer.
Baglione, velho inimigo de Caravaggio, deixou à posteridade o relato mais vívido dos últimos dias do artista. Tendo desembarcado em Porto Ercole, Caravaggio "foi preso por engano e posto na prisão por dois dias. Quando saiu, seu barco não se encontrava mais onde o deixara. Enfurecido e em desespero, começou a andar pela praia sob o sol de verão, tentando encontrar algum indício de sua embarcação e de seus bens. Finalmente, desmaiou em algum lugar e foi colocado numa cama, com febre muito forte. E ali, sem ajuda de Deus ou de amigos, morreu depois de alguns dias, tão miseravelmente quanto viveu". Era 18 de julho de 1610, e Caravaggio não havia ainda completado 40 anos. O perdão há tanto tempo esperado foi enfim concedido. Mas já era tarde.
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