terça-feira, 24 de julho de 2012

Piero della Francesca


Talvez, seja, hoje, o pintor italiano mais reverenciado de sua época. A celebridade, porém, é bem recente. Em seu tempo era conhecido como matemático, teórico da arte, além de pintar, mas no século XVII ficou quase esquecido. Apenas no século XX a pureza austera de suas formas e o completo domínio da luz e da cor passaram a ser devidamente apreciados.
A demora para que Piero della Francesca subisse à galeria dos grandes artistas reflete a relativa obscuridade de sua carreira. Passou grande parte da vida na pequena Borgo San Sepolero, cidade toscana, e na vizinha Arezzo. E, apesar de ter transitado por eminentes cortes renascentistas, nunca gozou do mesmo prestígio artístico de seus ilustres contemporâneos. Hoje, no entanto, os afrescos de Arezzo são reconhecidos como um dos grandes tesouros da arte.

Altamente individual, o estilo Piero della Francesca é bem diferente da pintura dos artistas italianos do século XV. Em lugar do detalhe figurativo e da ornamentação graciosa, ele propõe a harmonia geométrica e uma austeridade clássica que remontam à escultura grega.
São esses aspectos, aliados a seu poder de captar as nuances da luz e à rica harmonia das cores – porque foi um grande colorista e inigualável no tratamento da luz - , que tornam sua obra tão atraente hoje. Uma obra que busca a celebração religiosa por meio de um diálogo solene e eterno entre o humano e o divino.


Profundamente imerso na sofisticada cultura humanística de Florença, Urbino e Arezzo, muitas das pinturas de Pierodella Francesca conservam, contudo, um poder quase primitivo. A virgem da Madona do Parto, as figuras de Adão e Eva já velhos representadas em A Morte de Adão e os músicos angelicais de A Natividade parecem espelhar um ideal de humanidade ao mesmo tempo simples e sublime. No conjunto, a obra de Piero della Francesca é um cortejo solene, majestoso e estático de figuras monumentais, permeadas de grave dignidade, imersas numa contemplação mística e dispostas segundo rígida geometria.

A quase totalidade de sua obra é constituída de temas religiosos, com freqüência representados dentro da estrutura tradicional do retábulo. Mas não é uma arte convencional. O que o observador apressado não vê é que, em termos conceituais, sua obra não pretende ser meramente uma exaltação religiosa. Vai além. Exprime o desejo de aproximar-se do conhecimento de Deus mediante a sacralização da vida humana.

O mérito notável de sua originalidade técnica se apóia na maestria no uso da perspectiva – o primeiro, aliás, a tentar uma sistematização nesse campo. Essa preocupação pode ser admirada nos detalhes arquitetônicos de pinturas como Flagelação de Cristo e em A Virgem e o Menino com Santos e Anjos, conhecida como o retábulo de Brera. O piso e o teto recuados da galeria, no primeiro, e a abside de mármore que emoldura a Virgem, no segundo, foram pintados com incrível precisão, intensificada pela representação exata da luz e sombra.
Sabe-se pelos tratados teóricos de Piero della Francesca que esse resultado era fruto de rigorosa pesquisa matemática. O astista, no entanto, raramente buscava o virtuosismo em si. Em Ressurreição de Cristo ele usou uma perspectiva dupla: os soldados diante do sepulcro são vistos de baixo para cima, representados em tamanho reduzido, enquanto a parte superior do quadro pressupõe um ponto de vista na altura do rosto de Cristo. Isso porém, é mais do que uma demonstração de habilidade técnica. É parte do conteúdo emocional e simbólico desse afresco, que contrapõe a letargia do mundo humano ao despertar de um milagroso do ressuscitado.


O rosto e o vulto deste Cristo são um bom exemplo da representação de Piero della Francesca do corpo humano. Embora suas figuras de homens e mulheres por vezes possam parecer inexpressivas à primeira vista e as posturas quase sempre pareçam mais contemplativas do que ativas, sua vitalidade e nobresa são inquestionáveis. Além disso, ao lado da magistral habilidade para criar figuras ideais e heróicas, Piero demonstrou, enquanto retratista, que conseguia captar o caráter distintivo, único do modelo. Os retratos do Duque e da Duquesa de Urbino incluem-se entre as mais memoráveis imagens do Renascimento.

O talento de Piero della Francesca como retratista, porém, é menos importante que seu poder de sugerir algo mais arquetípico e atemporal na forma humana.
O jovem louro de Flagelação de Cristo e os anjos de O Batismo de Cristo e de A Natividade compartilham de uma serenidade reminiscente da escultura grega. Sabemos que Piero della Francesca, como outros artistas do Renascimento, utilizava-se de modelos vestidos em trajes leves, a fim de estudar o caimento dos tecidos e a maneira como a luminosidade incidia sobre eles. E podemos apontar algumas características particulares – os pés, por exemplo, cuja firme aderência ao chão é tão convincente em todos esses casos – como segredos da arte de Pierodella Francesca. Contudo, tais detalhes não podem, por si só, explicar a visão arquetípica subjacente que o pintor transmitiu de forma tão notável.

Outro aspecto dessa mesma visão – e talvez o que proporcione o prazer mais imediato e intenso – é a harmonia das cores. Apesar de danificados, os afrescos de Arezzo nunca deixam de surpreender pelo fulgurante frescor. Em Vitória de Constantino sobre Massenzio, a paleta até então restrita de Piero della Francesca atinge intensidade sinfônica. A mesma harmonia permeia as cores das vestes em Flagelação de Cristo e unifica dois anjos na Madona do Parto, cujos gestos e vestimentas estão como que refletidos numa heráldica imagem espelhada.


Mais característico ainda do estilo de Piero della Francesca é o sentido etéreo do espaço criado pela luz que ilumina os céus e se prolonga pelas paisagens.
Aqui Piero della Francesca em larga medida abre mão da perspectiva, usando a cor numa forma que antecipa os impressionistas. Em A Natividade, suas figuras angelicais e humanas estão ousadamente agrupadas contra um panorama rural que se perde na distância. O mesmo efeito é obtido de maneira ainda mais audaciosa do Díptico do Duque de Urbino, no qual nenhum fundo intermediário é colocado entre os perfis dos retratados e a paisagem idealizada de seus domínios. As terras aparecem bem embaixo e atrás de ambos, banhada pela luz clara e radiante do céu italiano.

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