domingo, 5 de agosto de 2012

Ticiano


Ao contrário de outros gigantes do Renascimento, que excederam seu talento em vários campos da arte e da ciência, Ticiano – ou Titianus, como costumava assinar, por vezes acrescentando à forma latina um p. de pictor, pintor – dedicou-se unicamente à pintura, e por meio dela conquistou glória e riqueza, sentou-se à mesa com príncipes de duques, foi aclamado por papas e reis. Soberano absoluto da Escola Veneziana, ao longo de mais de meio século elaborou uma obra extensa, de colorido inconfundível, composição vigorosa, pincelada ousada e vívida atmosfera. Sua produção, em que predomina o óleo sobre tela, inclui cenas religiosas carregadas de emoção, episódios mitológicos pulsantes de sensualidade e expressivos retratos, não raro tendo ao fundo paisagens banhadas de luz.
Ao visitar Ticiano em 1566, Giorgio Vassari observou que suas primeiras obras foram primorosamente executadas, mas “estes últimos quadros são elaborados com largas e ousadas pinceladas e manchas, de modo que de perto não se pode ver nada, enquanto que a certa distância parecem perfeitos”. Apesar dos exageros, o comentário é verdadeiro: na fase final de sua carreira, Ticiano efetivamente ampliou a pincelada e usou manchas para melhor transmitir a atmosfera que desejava criar. Vários admiradores e clientes não compreenderam a mudança, que interpretavam como sinal de decadência, mas Vassari, pintor experiente, entendeu que a nova técnica, embora desse à obra uma aparência de espontaneidade, demandava trabalho extenuante e, longe de indicar declínio, mostrava o desenvolvimento de um estilo mais livre.
Palma, o Jovem, um dos últimos discípulos de Ticiano, deixou uma vívida descrição dos métodos de trabalho do mestre. Primeiro ele cobria as telas com amplas massas de cor, que constituíam a base da composição, indicando os meios-tons com terra rossa (provavelmente vermelho veneziano) ou com branco. “Com o mesmo pincel, mergulhado em vermelho, preto ou amarelo, trabalhava as partes claras e com quatro pinceladas criava uma figura extraordinária”, relata Palma. Concluído o esboço, Ticiano “colocava o quadro na parede e deixava-o ali durante meses, sem ao menos relanceá-lo, até que o retomava e o examinava com olhar crítico, como se fosse seu inimigo mortal”. Punha-se, então, a trabalhar incansavelmente, fazendo tantas alterações quantas julgasse necessárias.
Quando finalmente se dava por satisfeito, passava os últimos retoques, “por vezes modulando com o dedo os pontos mais luminosos até transformá-los em meios-tons”, ou harmonizá-los com as cores ao redor, por vezes reavivando a composição “com um pouco de vermelho semelhante a uma gota de sangue” ou com uma mancha escura, igualmente aplicada com o dedo (segundo Palma, Ticiano pintava então mais com o dedo do que com o pincel). Dessa forma, “levava a obra a alto estado de perfeição, e, enquanto uma secava, passava para outra”. O mestre nunca pintou uma figura “alla prima”, informa-nos Palma, “e costumava dizer que quem improvisa jamais consegue produzir uma perfeita linha de poesia”.
Embora admitisse que o método produzia “belos e estupendos” resultados, Vassari considerava-o inadequado. Para ele, a maneira correta de pintar começava com a execução de esboços sobre papel, trabalhando-se cuidadosamente cada detalhe da composição; obtido o efeito planejado, transferia-se o desenho para a madeira ou a tela e começava-se a pintar. Este era o método adotado pelos expoentes da Escola Florentina – Leonardo, Rafael e, sobretudo, Michelangelo – e que Ticiano, como os venezianos em geral, parecia ignorar.
Em 1545, Ticiano estava em Roma e um dia recebeu a visita de Michelangelo, que Vassari levara para conhecê-lo. O visitante conversou um pouco, polidamente elogiou a tela Dânae, em que o colega trabalhava, e retirou-se. Então declarou a Vassari que “o colorido e o estilo de Ticiano agradaram-lhe muito, mas achava uma pena os venezianos não aprenderem a desenhar bem desde o começo e não seguirem melhor método em seus estudos”.
Na verdade, os venezianos estavam pouco interessados no desenho. Seguindo o exemplo de Giorgione, primeiro grande pintor da Escola Veneziana, tentavam explorar ao máximo a cor e a luz, e com esse objetivo usavam tonalidades intensas, jogavam com tons quentes e frios, procuravam captar os mais variados efeitos luminosos nas diferentes horas do dia. Ao conceber a composição, deixavam de lado as normas tradicionalmente aceitas e esforçavam-se acima de tudo, para criar uma atmosfera, para transmitir um estado de espírito.
Principal representante da Escola, Ticiano não só concretizou esses ideais com perfeição de gênio, como ainda enriqueceu-os com vigorosa contribuição pessoal. Suas paisagens de fundo, ricas em contraste de tons, conservam o espírito poético de Giorgione, porém suas figuras são mais exuberantes e vitais que as personagens de seu precursor. A composição é mais ousada, a pincelada larga e as manchas decididas ultrapassam a fluida pincelada de Giorgione, ajudando-o a criar atmosferas de maior intensidade, seja no drama violento de um quadro como Tarquínio e Lucrecia, seja na incontida alegria de A Bacanal, seja na mística apoteose de A Ascensão de Nossa Senhora.
Além de contribuir para criar as mais diversas atmosferas, a técnica de Ticiano oferecia-lhe uma vantagem de ordem prática que devia render-lhe bom dinheiro: seus numerosos discípulos podiam incumbir-se dos estágios intermediários da execução, enquanto ele mesmo se punha a planejar a criação de novas obras.
A partir da década de 1540, quando pelo menos trinta de seus discípulos tiveram o nome registrado, Ticiano praticamente não se dedicou a elaboração completa de um só quadro, embora variasse seu grau de participação. Não havia nada de estranho em tal prática, ao contrário, tratava-se de antiga tradição veneziana: os irmão Bellini e os pintores da família Vivarini confiavam a suas oficinas a maior parte das obras que concebiam e depois apenas as retocavam. O próprio talento de Ticiano, contudo, parece que contribuiu para minar o sistema: clientes e críticos mais exigentes esperavam encontrar seu gênio expresso em cada pincelada e muitas vezes decepcionavam-se ao constatar que estavam diante de quadros quase produzidos em série, a marca pessoal do mestre restrita à concepção e aos retoques finais. Como confirma Palma, o Jovem, os verdadeiros amantes da arte aderiam à nova noção do “divino gênio” individual, cuja obra, ainda que apenas esboçada ou inacabada, consideravam mais preciosa que o esmerado produto de uma oficina anônima.
Poucos porém, reclamavam, preferindo adotar a postura de um nobre espanhol que, em 1575, declarou: “Acho que um borrão de Ticiano será melhor que qualquer coisa feita por outro artista”.

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